A VERDADE
Baseado no
livro “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí, publicado pela Editora Ática
Módulo 20 -
Unidade 3
A verdade
como um valor
“Não se
aprende Filosofia, mas a filosofar”, já disse Kant. A Filosofia não é um
conjunto de ideias e de sistemas que possamos apreender automaticamente, não é
um passeio turístico pelas paisagens intelectuais, mas uma decisão ou
deliberação orientada por um valor: a verdade. É o desejo do verdadeiro que
move a Filosofia e suscita filosofias
Afirmar que
a verdade é um valor significa: o verdadeiro confere às coisas, aos seres
humanos, ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados indiferentes
à verdade e à falsidade.
Ignorância,
incerteza e insegurança
Ignorar é não saber alguma coisa. A ignorância pode ser tão profunda que sequer a percebemos ou a sentimos, isto é, não sabemos que não sabemos, não sabemos que ignoramos. Em geral, o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como eficazes e úteis, de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas, nenhum motivo para desconfiar delas e, consequentemente, achamos que sabemos tudo o que há para saber.
Ignorar é não saber alguma coisa. A ignorância pode ser tão profunda que sequer a percebemos ou a sentimos, isto é, não sabemos que não sabemos, não sabemos que ignoramos. Em geral, o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como eficazes e úteis, de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas, nenhum motivo para desconfiar delas e, consequentemente, achamos que sabemos tudo o que há para saber.
A incerteza
é diferente da ignorância porque, na incerteza, descobrimos que somos
ignorantes, que nossas crenças e opiniões parecem não dar conta da realidade,
que há falhas naquilo em que acreditamos e que, durante muito tempo, nos serviu
como referência para pensar e agir. Na incerteza não sabemos o que pensar, o
que dizer ou o que fazer em certas situações ou diante de certas coisas,
pessoas, fatos, etc. Temos dúvidas, ficamos cheios de perplexidade e somos
tomados pela insegurança.
Outras
vezes, estamos confiantes e seguros e, de repente, vemos ou ouvimos alguma
coisa que nos enche de espanto e de admiração, não sabemos o que pensar ou o
que fazer com a novidade do que vimos ou ouvimos porque as crenças, opiniões e
idéias que possuímos não dão conta do novo. O espanto e a admiração, assim como
antes a dúvida e a perplexidade, nos fazem querer saber o que não sabemos, nos
fazem querer sair do estado de insegurança ou de encantamento, nos fazem
perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza.
Quando isso
acontece, estamos na disposição de espírito chamada busca da verdade.
O desejo da
verdade aparece muito cedo nos seres humanos como desejo de confiar nas coisas
e nas pessoas, isto é, de acreditar que as coisas são exatamente tais como as
percebemos e o que as pessoas nos dizem é digno de confiança e crédito. Ao
mesmo tempo, nossa vida cotidiana é feita de pequenas e grandes decepções e,
por isso, desde cedo, vemos as crianças perguntarem aos adultos se tal ou qual
coisa “é de verdade ou é de mentira”.
Quando uma
criança ouve uma história, inventa uma brincadeira ou um brinquedo, quando
joga, vê um filme ou uma peça teatral, está sempre atenta para saber se “é de
verdade ou de mentira”, está sempre atenta para a diferença entre o “de
mentira” e a mentira propriamente dita, isto é, para a diferença entre brincar,
jogar, fingir e faltar à confiança.
Quando uma
criança brinca, joga e finge, está criando um outro mundo, mais rico e mais
belo, mais cheio de possibilidades e invenções do que o mundo onde, de fato,
vive. Mas sabe, mesmo que não formule explicitamente tal saber, que há uma
diferença entre imaginação e percepção, ainda que, no caso infantil, essa
diferença seja muito tênue, muito leve, quase imperceptível – tanto assim, que
a criança acredita em mundos e seres maravilhosos como parte do mundo real de
sua vida.
Por isso
mesmo, a criança é muito sensível à mentira dos adultos, pois a mentira é
diferente do “de mentira”, isto é, a mentira é diferente da imaginação e a
criança se sente ferida, magoada, angustiada quando o adulto lhe diz uma
mentira, porque, ao faze-lo, quebra a relação de confiança e a segurança
infantis.
Quando
crianças, estamos sujeitos a duas decepções: a de que os seres, as coisas, os
mundos maravilhosos não existem “de verdade” e a de que os adultos podem
dizer-nos falsidades e nos enganar. Essa dupla decepção pode acarretar dois
resultados opostos: ou a criança se recusa a sair do mundo imaginário e sofre
com a realidade como alguma coisa ruim e hostil a ela; ou, dolorosamente,
aceita a distinção, mas também se torna muito atenta e desconfiada diante da
palavra dos adultos. Nesse segundo caso, a criança também se coloca na
disposição da busca da verdade.
Nessa busca,
a criança pode desejar um mundo melhor e mais belo que aquele em que vive e
encontrar a verdade nas obras de arte, desejando ser artista também. Ou pode
desejar saber como e por que o mundo em que vive é tal como é e se ele poderia
ser diferente ou melhor do que é. Nesse caso, é despertado nela o desejo de
conhecimento intelectual e o da ação transformadora.
A criança
não se decepciona nem se desilude com o “faz de conta” porque sabe que é um
“faz de conta”. Ela se decepciona ou se desilude quando descobre que querem que
acredite como sendo “de verdade” alguma coisa que ela sabe ou que ela supunha
que fosse “de faz de conta”, isto é, decepciona-se e desilude-se quando
descobre a mentira. Os jovens se decepcionam e se desiludem quando descobrem
que o que lhes foi ensinado e lhes foi exigido oculta a realidade, reprime sua
liberdade, diminui sua capacidade de compreensão e de ação. Os adultos se
desiludem ou se decepcionam quando enfrentam situações para as quais o saber
adquirido, as opiniões estabelecidas e as crenças enraizadas em suas
consciências não são suficientes para que compreendam o que se passa nem para
que possam agir ou fazer alguma coisa.
Assim, seja
na criança, seja nos jovens ou nos adultos, a busca da verdade está sempre
ligada a uma decepção, a uma desilusão, a uma dúvida, a uma perplexidade, a uma
insegurança ou, então, a um espanto e uma admiração diante de algo novo e
insólito.
Dificuldades
para a busca da verdade.
Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a verdade. Pode parecer paradoxal que assim seja, pois parecemos viver numa sociedade que acredita nas ciências, que luta por escolas, que recebe durante 24 horas diárias informações vindas de jornais, rádios e televisões, que possui editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de cinema e de teatro, vídeos, fotografias e computadores.
Ora, é
justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de informação que acaba
tornando tão difícil a busca da verdade, pois todo mundo acredita que está
recebendo, de modos variados e diferentes, informações científicas,
filosóficas, políticas, artísticas e que tais informações são verdadeiras,
sobretudo porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida
pelas pessoas, que, por isso, não têm meios para avaliar o que recebem.
Bastaria, no
entanto, que uma mesma pessoa, durante uma semana, lesse de manhã quatro
jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes; à tarde, frequentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos cursos estariam sendo
ministrados; e, à noite, visse os noticiários de quatro canais diferentes de
televisão, para que, comparando todas as informações recebidas, descobrisse que
elas “não batem” umas com as outras, que há vários “mundos” e várias
“sociedades” diferentes, dependendo da fonte de informação.
Uma
experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as pessoas
não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem que, em
lugar de receber informações, estão sendo desinformadas. E, sobretudo, como há
outras pessoas (o jornalista, o radialista, o professor, o médico, o policial,
o repórter) dizendo a elas o que devem saber, o que podem saber, o que podem e
devem fazer ou sentir, confiando na palavra desses “emissores de mensagens”, as
pessoas se sentem seguras e confiantes, e não há incerteza porque há
ignorância.
Uma outra
dificuldade para fazer surgir o desejo da busca da verdade, em nossa sociedade,
vem da propaganda.
A propaganda
trata todas as pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – como crianças extremamente
ingênuas e crédulas. O mundo é sempre um mundo “de faz-de-conta”: nele a
margarina fresca faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o automóvel faz o
homem confiante, inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos negócios, cheio
de namoradas lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente, bem empregada,
bem vestida, com um belo apartamento e lindos namorados; o cigarro leva as
pessoas para belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e de negócios
coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de velas.
A propaganda
nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve. Ela vende o
produto rodeando-o de magias, belezas, dando-lhe qualidades que são de outras
coisas (a criança saudável, o jovem bonito, o adulto inteligente, o idoso
feliz, a casa agradável, etc.), produzindo um eterno “faz de conta”.
Uma outra
dificuldade para o desejo da busca da verdade vem da atitude dos políticos nos
quais as pessoas confiam, ouvindo seus programas, suas propostas, seus projetos
enfim, dando-lhes o voto e vendo-se, depois, ludibriadas, não só porque não são
cumpridas as promessas, mas também porque há corrupção, mau uso do dinheiro
público, crescimento das desigualdades e das injustiças, da miséria e da
violência.
Em vista
disso, a tendência das pessoas é julgar que é impossível a verdade na política,
passando a desconfiar do valor e da necessidade da democracia e aceitando
“vender” seu voto por alguma vantagem imediata e pessoal, ou caem na descrença
e no ceticismo.
No entanto,
essas dificuldades podem ter o efeito oposto, isto é, suscitar em muitas
pessoas dúvidas, incertezas, desconfianças e desilusões que as façam desejar
conhecer a realidade, a sociedade, a ciência, as artes, a política. Muitos
começam a não aceitar o que lhes é dito. Muitos começam a não acreditar no que
lhes é mostrado. E, como Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a
indagar sobre fatos e pessoas, coisas e situações, a exigir explicações, a
exigir liberdade de pensamento e de conhecimento.
Para essas
pessoas, surge o desejo e a necessidade da busca da verdade. Essa busca nasce
não só da dúvida e da incerteza, nasce também da ação deliberada contra os
preconceitos, contra as ideias e as opiniões estabelecidas, contra crenças que
paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente.
Podemos,
dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da verdade. O primeiro é o que
nasce da decepção, da incerteza e da insegurança e, por si mesmo, exige que
saiamos de tal situação readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da
deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de
ir além delas e de encontrar explicações, interpretações e significados para a
realidade que nos cerca. Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude
filosófica.
Podemos
oferecer dois exemplos célebres dessa busca filosófica. Já falamos do primeiro:
Sócrates andando pelas ruas e praças de Atenas indagando aos atenienses o que
eram as coisas e ideias em que acreditavam. O segundo exemplo é o do filósofo
Descartes.
Descartes
começa sua obra filosófica fazendo um balanço de tudo o que sabia: o que lhe
fora ensinado pelos preceptores e professores, pelos livros, pelas viagens,
pelo convívio com outras pessoas. Ao final, conclui que tudo quanto aprendera,
tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e
incerto. Decide, então, não aceitar nenhum desses conhecimentos, a menos que
pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança. Para isso,
submete todos os conhecimentos existentes em suas época e os seus próprios a um
exame crítico conhecido como dúvida metódica, declarando que só aceitará um
conhecimento, uma idéia, um fato ou uma opinião se, passados pelo crivo da
dúvida, revelarem-se indubitáveis para o pensamento puro. Ele os submete à
análise, à dedução, à indução, ao raciocínio e conclui que, até o momento, há
uma única verdade indubitável que poderá ser aceita e que deverá ser o ponto de
partida para a reconstrução do edifício do saber.
Essa única
verdade é: “Penso, logo existo”, pois, se eu duvidar de que estou pensando,
ainda estou pensando, visto que duvidar é uma maneira de pensar. A consciência
do pensamento aparece, assim, como a primeira verdade indubitável que será o
alicerce para todos os conhecimentos futuros.
Fonte:
www.armazem.literario.nom.br
Organização
da postagem: Profª Lourdes Duarte
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